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Médica quilombola inicia carreira em hospital onde avó trabalhou na limpeza durante quase 20 anos

Médica quilombola inicia carreira em hospital onde avó trabalhou na limpeza, em Goiás Uma trajetória para inspirar as próximas gerações. Aos 27 anos, Lí...

Médica quilombola inicia carreira em hospital onde avó trabalhou na limpeza durante quase 20 anos
Médica quilombola inicia carreira em hospital onde avó trabalhou na limpeza durante quase 20 anos (Foto: Reprodução)

Médica quilombola inicia carreira em hospital onde avó trabalhou na limpeza, em Goiás Uma trajetória para inspirar as próximas gerações. Aos 27 anos, Lígia Fonseca iniciou a sua carreira na medicina no Hospital de Caridade São Pedro de D’Alcântara, local onde nasceu e a sua avó trabalhou na limpeza durante quase 20 anos. Parte da comunidade Alto Santana, ela se tornou a primeira médica quilombola a atuar na cidade de Goiás, na região noroeste do estado. Neta de Ione Francisca, que foi parteira, benzedeira e reuniu diversas pessoas em folias tradicionais da cidade, Lígia tem orgulho do lugar que ocupa atualmente. Sua avó trabalhou no Hospital São Pedro na área de serviços gerais, auxiliando na lavanderia e na limpeza por mais de uma década. Nos corredores, muitos funcionários que trabalham ao lado da neta reconhecem a trajetória da avó. A jovem se emociona ao falar sobre a importância das suas raízes. “O lugar que eu ocupo hoje não é fácil. Eu me emociono muito em saber que a minha avó trabalhou aqui em um serviço que é mais desvalorizado”, contou. ✅ Clique e siga o canal do g1 GO no WhatsApp “Quando a gente vê que pode e consegue ocupar esses lugares é gratificante demais. O cuidado é diferente, o olhar com as pessoas, porque a gente está do outro lado também. Cada vez mais nós vamos conseguir descentralizar essa medicina elitizada”, declarou. Com mais de 80 anos, Ione faleceu em 2018, antes de ver a neta ingressar na universidade, mas Lígia a mantém viva em suas memórias. Após se formar em maio de 2025, ela enviou um currículo para o hospital e mesmo sendo recém-formada conseguiu uma oportunidade de ingressar na área de clínica geral. “Ela representa a conquista de gerações e a esperança de um futuro com mais equidade na saúde”, escreveu o hospital em uma publicação que celebrou a chegada da médica na unidade. Lígia Fonseca e o retrato que pintou da avó, Ione Francisca, em Goiás Reprodução/Instagram de Lígia Fonseca Início de um sonho Em entrevista ao g1, Lígia contou que o seu sonho de ser médica iniciou ainda na infância por influência do pai. Após sair do ensino médico, a jovem conseguiu uma bolsa em um curso preparatório para tentar ingressar na universidade. Depois de um ano, a tão sonhada vaga não veio e por não ter condições de se manter, ela passou a estudar em casa. Na sua segunda tentativa, a jovem passou para o curso de biomedicina. Mesmo não sendo o seu objetivo inicial, Lígia se mudou para Jataí, na região sudoeste, e cursou um ano da graduação. Em 2019, ela fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) novamente. Por meio do programa de cotas para quilombolas da Universidade Federal de Catalão (UFJ), foi possível dar início a realização do seu sonho de fazer medicina. Foram três anos de tentativa até que Lígia, natural da cidade de Goiás, se mudasse novamente para Jataí para iniciar uma outra graduação, dessa vez, seria a que ela sempre quis. Durante os anos de formação, ela lutou para se manter no curso. Em meio aos desafios, ela conquistou amigos e compartilhou suas experiências nas redes sociais. Em uma publicação, ela celebrou a sua formação como médica após anos de estudo e dedicação. “Esse momento não é só sobre me tornar médica. Já banalizei várias vezes durante o decorrer do curso a relevância da minha graduação, pelo próprio contato e costume com o ambiente médico. Mas, me dei conta que esse momento é de luta”, escreveu. Lígia ressaltou no texto que quando ingressou na faculdade houve um aumento de 690% dos pretos e pardos no curso. No entanto, mesmo assim, o grupo representa apenas 27% do total de ingressos em universidades públicas no país. “E fica aqui meu incentivo para crianças que sonham, mas acham impossível, não é”, destacou a jovem. LEIA TAMBÉM: Xadrez Quilombola: conheça projeto desenvolvido em Goiás que está entre os 10 mais inovadores na educação Cavalcante é a 3ª cidade no país com maior proporção de moradores quilombolas, aponta Censo do IBGE Água azul turquesa e trilha no Cerrado aberto: conheça detalhes sobre cachoeira que fica dentro de território quilombola Quilombo Lígia contou que o local onde foi criada foi reconhecido como quilombo pela Fundação Cultural Palmares (FCP) em 2017. De origem periférica, a comunidade ficou conhecida como “Chupa osso” devido à carência dos moradores. “As pessoas que moram lá são pessoas trabalhadoras em áreas marginalizadas, são garis, minha avó mesmo trabalhou em serviços gerais por muitos anos, e não tinham condições financeiras de comprar carne, por exemplo. Elas iam no açougue e pegavam os ossos, que só tinham um pouco de carne, e comiam”, relatou. Atualmente, o nome ainda é usado como uma forma de fortalecimento e ressignificação para a comunidade, explicou a médica. Lígia guarda boas lembranças do lugar em que cresceu rodeada de atividades e crianças para brincar. Atualmente, ela assiste o início de uma nova geração. “Eu já consigo ver muitas de nós ocupando esses lugares. A gente já tem outra quilombola que está fazendo medicina na UFJ e que também é do Alto Santana, da mesma comunidade que eu”, disse. Ocupar espaços e reivindicar direitos Ao g1, Elenízia da Mata Secretária de Igualdade e Equidade Étnico-Racial da Prefeitura de Goiás, destacou que a cidade foi construída a partir do trabalho de pessoas negras e indígenas. No entanto, historicamente, essas pessoas ficaram à parte de oportunidades e de direitos. Ela destacou que essa desigualdade é refletida em espaços de formação. Em cursos com maior potência econômica, como o de medicina, essa realidade é acentuada. “Quando a gente consegue registrar na história de que em 2025 nós estamos com a primeira mulher médica afrodescente e remanescente de quilombo, nós celebramos a vitória da Lígia, mas também denunciamos o apagamento da presença negra e indigena em Goiás”, declarou. "A chegada de Lígia inspira outros jovens quilombolas a perceber que existem outros caminhos para além dos lugares de suberviência ou de estarem apenas no serviço bruto. Aponta para o fato de que apostar na educação pode trazer mobilidade social", afirmou a secretária. Elenízia pontuou ainda que conheceu Ione, avó de Lígia. Ela foi a responsável por escrever o relatório antropologico que reconheceu a comunidade Alto Santana como quilombola em 2017. Na ocasião, a senhora a contou sobre um episódio de racismo que sofreu dentro do hospital após se oferecer para dar de mamá para uma criança e ter sido repreendida por ser uma mulher preta. Casos como esse reforçam a importância do lugar ocupado pela neta de Ione. "Ver esse ciclo se fechando trás esperança para a gente", completou Elínizia. Lígia Fonseca se tornou a primeira médica quilombola da cidade de Goiás Reprodução/Instagram de Lígia Fonseca 📱 Veja outras notícias da região no g1 Goiás. VÍDEOS: últimas notícias de Goiás